segunda-feira, 18 de maio de 2009

Pai Herói

Desde sempre foi rebelde. Foi daqueles miúdos que, tal como dizia a minha Avó, 'tem tanto de arisca como de meigo'.
Ele mandava os filhos dos patrões dos pais abaixo dos muros para lhes apanhar as sandes de marmelada. A alternativa ao pão sem nada ou com manteiga nos dias de festa, compensavam a sova que levaria por deitar abaixo do muro o Luizinho, filho do Sr Bacelar.

'Meninos, a pereira junto ao tanque tem três pêras madura. Ai de quem lá vá buscá-las!' Pois o Sr Silvano conhecia bem o filho que tinha e quando, depois de jantar, o Victor e os irmãos chegaram ao sitio da pereira, já ele lá estava com a mão na fivela do cinto.
'Nós só viemos dar uma volta.', disse o Victor antes que o pai dissesse alguma coisa.
'Sr Victor, se eu não o conhecesse… tudo para casa antes que eu me zangue.' Bom, quando estas histórias eram contadas em família, o avô Silvano admitiu que foi uma provocação… afinal ele foi quem informou os miúdos que as pêras estavam maduras!

Um dia o Victor foi estudar para a escola Comercial. O Sr Bacelar prometeu ao Sr Silvano um emprego para o rapaz no banco, mas ele tinha de 'fazer' o 7º ano do liceu na escola comercial. Com sacrifícios o rapaz foi posto a estudar. Contrariado um belo dia decide que não vai mais para aquela escola. 'Pai, não quero ir mais para a escola comercial. Quero ir para o Infante, estudar mecânica.' Ao mesmo tempo que lhe dava uma bofetada, o pai disse-lhe: 'Se queres ir para outra escola vai por tua conta!' 'E vou. E também já arranjei um emprego. Vou estudar de noite', respondeu Victor, tentando equilibrar-se de modo a não tombar sobre o poço, que felizmente estava tapado. O Sr Silvano esse não quis saber. Afastou-se a resmungar:' E agora que desculpa vou dar ao Sr Bacelar!?'
Ele foi trabalhar para uma grande indústria do norte. Ele e mais alguns colegas foram 'apadrinhados' pelo directo, o Engenheiro Guilherme. Quando chovia levava-os à escola no seu Mercedes. Aos que tinham boas notas oferecia uma nota de 100$00. Mas também, tal como acontecia com os outros, lhes eram fechadas as portas das salas onde estavam os cartões de ponto sempre que se atrasassem, um minuto que fosse. Significava uma manha perdida, sem ganhar, sentados numa sala à espera d hora do almoço.Com os 100$00 faziam uma festa. A primeira paragem era, antes de seguirem para a escola, na tasca da esquina do cruzamento de S. Mamede para comer uma isca e beber um copo de vinho. Eram momentos bem passados aqueles.

O Victor não perdeu nunca a sua rebeldia, pelo contrário refinou-a e usou-a para defender as suas convicções. Descobriu os esconderijos do Avante e começou a lê-lo às escondidas de quem o já lia às escondidas. Um dia foi apanhado. 'Rapaz, ainda és muito novo para ler essas coisas', disse-lhe o Sr Silva, o encarregado, comunista assumido. 'Muito novo? Já tenho dessasete anos. Eu tenho de continuar o que vocês começaram....' Convenceu-os. Passou a fazer parte do circuito 'legal' de leitura, passou a ser informador das greves e passou a fazê-las. Tinha encontros no areal de Matosinhos com o 'homem da gabardina' a observá-lo a ele e aos colegas. Era vigiado na escola e um dia, tinha acabado de completar dezoito anos, foi 'chamado à PIDE', na rua do Heroísmo. Teve medo. Disse ao Sr Silva, que a sorri disse: 'Olha que vais estar lá o tempo todo sem te deixarem ir à casa de banho nem sentar. Passas no urinol do jardim', 'clientes frequentes' daquele edifício. Assim fez. Passou no urinol antes de entrar. Tremia que nem varas verdes. E assim foi também, a parte de não se poder sentar nem ir ao WC. Foi um dia inteiro, com os agentes a entrarem e a sair, a fazerem-lhe perguntas cada um à sua maneira, de assuntos diferentes.Quando chegou a casa era noite. O Pai perguntou-lhe por onde andara. Não respondeu. Levou uma tareia, a física mesmo, a psicológica, essa apanhou-a durante o dia… o pior da vida dele até aquele momento.

Eleições. Humberto Delgado candidata-se. Victor e os amigos apoiam-no incondicionalmente.
Há dias, tirada da net, mostro-lhe uma foto da chegada de Humberto delgado à estação de São Bento. 'Estás a ver aquele, ali naquele poste, junto ao Banco Ultramarino? Sou eu!', diz todo orgulhoso. Aquele dia valeu-lhe mais uma 'visita' à PIDE. E aquele homem foi o seu herói de sempre e para sempre. Ainda hoje fala dele com admiração. Não quis acreditar na morte dele. E nunca acreditou em acidentes.

Quando Ivo Delgado, o neto escreveu livro sobre Humberto Delgado, comprou-o logo no primeiro dia e quando Ivo Delgado veio ao Norte, à casa das Artes em Vila Nova de Famalicão apresentar o livro, ele foi. Ele foi e levou recortes de jornal com notícias da campanha eleitoral e panfletos da campanha eleitoral que ele guarda religiosamente. O neto não os conhecia. Quis falar com ele com mais tempo. No fim agradeceu-lhe por tudo e por nada. Apesar de tanto trabalho de investigação conclui que ainda muito desconhece sobre o avô.

Chega a idade da tropa. Vai. Primeiro para Santa Margarida, depois para Arca d'Água. Passa lá 20 meses.
Quando regressa à vida civil, ingressa no instituto superior técnico em engenharia mecânica, o que ele sempre quis.
Durante a tropa o colega Pinheiro cometeu uma asneira, saiu com um carro sem autorização e teve um acidente. É preso, julgado. Sentença: uma dezena de anos de cadeia ou mais serviço militar, desta vez em África, onde entretanto tinha rebentado a guerra. Escolhe a segunda opção.
Por arrasto é chamada toda a companhia. Tem de abandonar novamente o emprego e os estudos. Um sonho adiado...

Embarcam no Vera Cruz para a longa viagem. Houve tempo para tudo. Para se conhecerem, para pensarem na vida e para o Victor elevar ao máximo a sua rebeldia nata e uma bela noite começar a colar papéis por todo o barco a promover o desvio do barco para o Brasil. Valeu, ou não a reacção dos amigos Pinho e Matos, que ao aperceberem-se do seu acto trataram de recolher os papéis. Fecharam-no no camarote durante uns dias até ele prometer que não repetia tal atitude.
Chegaram a África. O destino -lo encontrar-se com um Major conhecido da tropa em Arca d'Água que procurava um motorista para a esposa e a filha. Ele sabia que Victor tinha tirado a carta de condução no quartel de Arca d'água. Convidou-o. Ele aceitou.

Em África viveu como se não houvesse amanhã. O que recebia hoje, gastava hoje. Amanhã vendia o que tinha comprado ontem se precisasse de dinheiro.

Começou a trocar correspondência com Odeta, a vizinha, amiga. Só amiga, até então. Teve também uma madrinha de guerra. Odeta enviava-lhe roupa, doces e cigarros. Isabel livros. 'O Fio da Navalha', 'Por quem os Sinos Dobram', 'O Velho e o Mar', foram ao encontro dele e voltaram com ele.

Viu colegas morrerem, nenhum em combate. Um pura estupidez.

Teve também de conduzir colunas militares ao serviço do Major Spínola. Foi marcante, o encontro com ele. Entre outras coisas levava colchões para um acampamento militar. Voltou para Luanda... com os colchões. Spínola descobriu que os colchões para os militares eram diferentes dos dos oficiais. Rejeitou e devolveu-os.

Fez muitas coisa em África. Divertiu-se, sofreu de saudades, pela morte dos camaradas e pela incerteza do dia seguinte... dois longos anos.

Quando voltou, voltou mais rebelde do que antes. Odeta esperava-o. O Chefe Reis, futuro sogro também. Estava fardado e esperava-o com o carro do comando. Estava eufórico. A euforia fazia-o dizer o que não devia. Estava a ser vigiado pelos homens da gabardina. Saiu do comboio em Campanhã a desenrolar um rolo de papel higiénico, enquanto insultava Salazar.

Não voltou À universidade. Só ao emprego. Casou com a Odeta. Isabel ficou só amiga, que entretanto se afastou. A amizade não lhe era suficiente. Preferiu não ter nada...

Por estas e muitas outras coisas aqui não contadas, ainda, este é será SEMPRE o meu herói... É o meu Pai.

Ficção para a Fábrica de Histórias

5 comentários:

Alberto Velez Grilo disse...

Fantástico este Victor rebelde.

Parabéns.
Beijinhos

Sindarin disse...

Olá! esta história sei k é verdadeira porque o sentimento não se esconde e porque tb um dia me contaram e uma pessoa k o viveu, a his´toria dos colchões diferentes. Eram outros tempos outros homens mas uns heróis permanecem. É com muita emoção que li e com mta verdade que digo. Obrigada por uma hisória linda. Parabéns ao pai e a quem tem a honra de ser seu descendente.

Reflexos disse...

Pois... Sindarin.
Obrigada aos dois.

sonhandoaosquarenta disse...

Sem palavras.
Beijinhos

Sindarin disse...

Olá! Agradeço muito o teu bonito gesto de teres respondido ao meu pedido de desculpas, porque me achei na obrigação de o fazer. Mto obrigado pelos votos de recuperação e pelo lindo gesto que tiveste obrigada. Um beijinho