segunda-feira, 11 de maio de 2009

Auto danado

Antigamente, por volta da década de cinquenta, talvez, não havia cantinas nas fábricas. Havia sim o costume de à hora do almoço os filhos ou as mulheres dos operários irem levar-lhes a marmita à porta da fábrica. Quando não havia crianças para as levar e as mulheres não podiam, ou porque também trabalhavam ou porque não podiam sair de casa, havia um grupo de mulheres que a troco de alguns tostões recolhiam as marmitas em casa dos operários e entregavam-nas à porta das respectivas fábricas.

Um dia, uma dessas mulheres foi atropelada. Subia ela a rua do Freixo com um tabuleiro cheio de marmitas, num equilíbrio conseguido só com muito anos e quilómetros, e foi atropelada.

O filho do patrão de uma das fábrica, daquelas onde ela ia entregar os almoços, descia a rua a uma velocidade tal que na curva da Hidráulica do Norte não segurou o carro e galgou o passeio. A pobre da mulher ia a passar naquele preciso instante e foi colhida.

Chamaram os bombeiros, a ambulância e a polícia. Da polícia quem foi tomar conta da ocorrência foi o chefe Reis, que no auto escreveu:

‘Aos 15 de Julho do ano de 1953 pelas 13h 42m, o Senhor António Lopes circulava no sentido descendente da rua do Freixo e junto à curva da Hidráulica do Norte ao perder o controlo sobre a viatura que conduzia, despistou-se colhendo no passeio a senhora Maria do Anjos Costa. A senhora foi transportada para o hospital de Santo António em estado grave.’

O rapaz era filho de um conceituado empresário da zona. A mulher era uma de muitas que levavam as marmitas aos operários.

Com aquele auto, o rapaz estava agora em maus lençóis. O seguro teria de suportar os custos da hospitalização da mulher, que entretanto ficara internada, e o rapaz seria julgado por condução perigosa.

A mulher ainda esteve algum tempo no hospital. O dinheiro que ela ganhava fazia falta para o sustento da família que agora era garantido com o salário do marido, operário no ‘Miche’, nome por que era conhecida a Fábrica do Esmalte Michelin.

Um dia, ainda a mulher estava no hospital sem data prevista para ter alta, o chefe Reis foi chamado ao comando. Foi recebido pelo comissário que lhe apresentou o auto do acidente e disse-lhe: ‘É preciso inverter a ordem das coisas a este auto’. O chefe Reis respondeu: ‘Concerteza.’

Novo auto foi feito:
Aos 15 de Julho do ano de 1953 pelas 13h 42m, a Senhora Maria do Anjos Costa, quando subia a rua do Freixo, junto à Hidráulica do Norte foi colhida no passeio pela viatura do Senhor António Lopes que descia a mesma artéria.

A senhora foi transportada para o hospital de Santo António em estado grave.’

Este episódio foi mal visto e custou ao chefe Reis uma promoção que estava para acontecer.
‘Fiquei sem a promoção, mas com a consciência tranquila.’
‘Avô, a senhora morreu?’
‘Não, mas ficou muito mal e nunca mais pode carregar os tabuleiro’
‘E o rapaz?’
‘Não lhe aconteceu nada. Alguém fez um terceiro auto e alguém foi a tribunal testemunhar o acidente.’
‘E tu, Avô? Porque não foste?’
‘Porque eu não vi que a mulher circulava fora do passeio…’

1 comentário:

Alberto Velez Grilo disse...

Bonita história (verdadeira, evidentemente) do tempo e que a maioria das pessoas ainda colocava a honra acima de uma promoção...