domingo, 15 de março de 2009

A Chávena Mil Flores

Quando eu tinha nove meses, mudamo-nos para um apartamento.
Era num prédio de 3 andares e ficava no centro da vila. Era o prédio mais alto da vila!
A casa onde morávamos, e para onde os meus pais haviam ido morar quando casaram, ficava afastada do centro, numa zona pouco povoada e com poucos transportes públicos.

Apesar de tudo, foi com alguma relutância que a minha Mãe se mudou.. Sempre vivera em casas com jardim e quintal e para ela era ir viver para uma gaiola!
Fomos viver para o terceiro andar. Eram 56 degraus que os meus pais todos os dias tinham que descer e subir comigo ao colo. Mais tarde a tarefa tornou-se ainda mais morosa, pois comecei a andar e a querer descer e subir as escadas por meu pé!

Três andares e seis habitações, todas habitadas por famílias jovens com crianças, excepto o apartamento em frente ao nosso.
Para o apartamento em frente ao nosso tinha ido morar uma velhota, de quem  nunca se soube o nome e que não falava com ninguém!
Dizer que ela não falava com ninguém é como quem diz. Falava com a minha Mãe por minha causa. Adorava-me!
Diz a minha Mãe, que ela se fartava de brincar comigo e inexplicavelmente eu era uma simpatia para com ela! 

Isto não seria nada de especial se eu fosse uma daquelas crianças simpáticas, que se riem para todos e com todos! Mas não! Das pessoas conhecidas e amigas, eu só dava beijos a duas e colo, nem pensar!
Muitas vezes quando a minha Mãe vinha das compras comigo ao colo e carregada com as sacas, quem queria ajudar, bem que tinha que carregar com as compras, pois eu sair do colo da minha Mãe, significava berreiro profundo!

Da velhota pouco ou nada se sabia. Nunca ninguém a visitou no tempo em que ela lá morou e pouco saia de casa. Só para ir às compras, e isto quando não era o empregado da mercearia que lá ia buscar a lista e mais tarde levar as compras.
A partir de uma certa altura, a velhota começou a dizer à minha Mãe que um dia eu ia passar uma tarde com ela. A minha Mãe dizia que sim, convicta de que eu nunca iria, pois mal deixasse de a ver  armaria tal berreiro que a velhota teria de me levar de volta!

Esse dia chegou. A Velhota tocou à campainha e perguntou  se eu podia ir passar a tarde com ela. A minha Mãe disse que sim. Ela levou-me e, inexplicavelmente, eu fui e estive a tarde toda com ela e nem uma só vez perguntei pela minha Mãe!
A minha Mãe muitas vezes fica boquiaberta, quando eu lhe digo que me lembro de certas coisas da minha infância, pois são de fases em que eu sou mesmo muito nova.

Mas nem da Velhota nem desse dia tenho memória.
O que é certo, é que eu passei a tarde com ela e quando ela tocou à campainha de minha casa, conta a minha Mãe, eu apresentava-me com um sorriso de orelha a orelha, o que era raro na minha pessoa, mesmo em ambiente familiar! A completar ainda trazia uma chávena, de porcelana chinesa, na altura rara e a que chamavam ‘mil flores’. Segurava-a com as duas mãos e quando cheguei junto da minha mãe, só disse: ‘Prenda linda, Mamã’

Um dia, o apartamento apareceu vazio, com escritos nas janelas. (Dantes, quando uma casa estava para alugar, o proprietário colava nos vidros papéis brancos. A esses papéis chamavam-se ‘escritos’ e todos sabiam que a casa estava para alugar.)
A Velhota tinha desaparecido e todos o seus haveres. Nunca mais ninguém a viu. Ainda hoje está por explicar o mistério da saída dos móveis. É que ninguém, mesmo ninguém, viu um único móvel sair do apartamento!
A minha Mãe, em tom de brincadeira, costuma dizer que, não fosse a chávena, teria dúvidas quanto à existência da Velhota.
Mas a chávena existiu e ainda existe. Está agora na minha casa, junto das muitas que eu tenho. Provavelmente vem daí a minha paixão por coisa antigas, principalmente chávenas!

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