quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Uma história

No início dos anos 20 do século passado, com a transferência da Barbosa e Almeida, conhecida por 'fábrica das garrafas', várias famílias emigraram da margem sul para o Porto e sua periferia. Entre essas famílias estava a da minha avó: os meus bisavós, a minha avó e os 3 irmãos.
A história que eu vou contar tem como protagonista a Bina (minha Avó) e vou contá-la na primeira pessoa, tal e qual a ouvi da boca dela.

Quando viemos viver para o Porto, eu, os meus irmãos e os meus pais, fomos viver para uma casa na rua do Freixo. Naquele tempo, as casas eram nas ilhas e morava lá de tudo. Na nossa ilha havia um ferreiro, que trabalhava no pátio, onde as crianças também brincavam durante o dia.
Ele, o Ferreiro era o encanto das crianças por causa do fogo...os rapazes da ilha todos diziam que quando fossem grandes queriam ser como ele!
Um dia enquanto brincávamos, qualquer coisa correu mal no trabalho do ferreiro e saltou-me uma coisa para o olho.
Corri para a minha mãe, a chorar, ela lavou-me o olho com água fresca e secou-mo com um paninho limpo, rematando com alguns beijinhos, dizendo que já passava.
O pior é que não passou e o olho ganhou junto à íris uma úlcera, que para além de ter mau aspecto se alastrava de dia para dia.
Foi então que a minha mãe me embrulhou num xaile e juntamente com o meu pai fomos ao hospital de Santo António.
No hospital disseram-nos que não podíamos ser atendidos porque os nossos documentos ainda não tinham vindo de Lisboa...
Que fazer agora? Os meus pais comigo embrulhada no xaile, sentaram-se no jardim da Cordoaria a pensar na vida.
Estávamos os três ali sentados, sem forças para nada, nem dali sair, quando passa um senhor muito bem parecido...daqueles que usavam fato, chapéu e bengala, e nos pergunta o que se passava.
Entre lágrimas a minha mãe conta-lhe que eu m havia magoado no olho e que tinha vindo comigo ao hospital, onde não nos receberam porque não estávamos registados ainda por termos vindo do Seixal há pouco tempo.
O Sr. tirou então do bolso um cartão e disse:
-Amanhã vá a esta morada e diga que quer ser atendida ainda amanhã, pelo médico. Não se preocupe com as despesas, diga-lhe que vai do meu mando ( e tirou do bolso um segundo cartão).
Despediu-se e nunca mais o vimos....a minha mãe disse que foi um anjo que desceu à terra...
No dia seguinte, lá fomos nós... era um consultório médico muito distinto, onde as senhoras usavam roupas de seda e chapéuzinho. Naquela época as mulheres do povo, como a minha mãe andavam de xaile e lenço na cabeças.
Mostramos os cartões à empregada da recepção e tal como o senhor havia dito, o meu pai disse que queríamos ser atendidos naquele dia.
Foi um outro anjo que nos apareceu, o médico. Olhou para mim e disse:
-Então minha menina, vamos lá ver isso...não tenhas medo que eu não te vou fazer mal!
Sofri muito, mesmo muito com o que ele me fez ao olho. No fim disse para os meus pais:
-Foi por um triz que ela não cegou do olho. Agora temos de tratar, mas vocês têm de ajudar. Sr José, acha que consegue fazer os tratamentos À menina?
O meu pai, coitado, tinha umas mãos grandes e rudes, de trabalho! A vida dele tinha sido trabalhar no campo e agora na fábrica! Mas com toda a certeza de que ia conseguir disse:
-Concerteza Senhor Doutor, só tem de me dizer o que tenho de fazer.
Assim foi, o médico lá disse ao meu pai o que fazer:tinha de fazer um penso com uma pomada que ele lhe próprio fez e todos os dias ao deitar colocá-la no olho. Depois teria de lá voltar.
Assim foi, todos os dias antes de deitar, o meu pai lá me punha a pomada com muito cuidado tal e qual o médico indicara.
Quando chegou o dia lá voltamos nós ao médico: o olho tinha melhorado, já não tinha a úlcera, a única coisa é que tinha ficado uma mancha branca em cima do castanho...
Mais uma vez fomos atendidos sem esperar e o médico depois de analisar o olho durante algum tempo, disse:
-A minha parte está cumprida. A menina não perdeu a visão, mas nunca deixe ninguém mexer nesse olho, se quer manter a visão.
Esta foi a última visita ao médico, os meus pais ainda perguntaram quem era o senhor que nos tinha mandado para lá. O médico disse que isso não importava e que as contas estavam todas pagas.
Voltamos para casa felizes pela cura do olho e por saber que havia pessoas boas no mundo!
É esta a história da Bina. Hoje ela tem 92 anos, nunca deixou ninguém mexer no olho, inclusive um médico quis operá-la às cataratas e ela só deixou fazer ao outro olho!
Quem era o homem, ninguém sabe, o médico também ela não sabe dizer... só que era na rua dos Clérigos...