'Que dia!'-dizia Madalena, enquanto conduzia o carro a caminho de casa. Era um hábito que tinha mantido de criança, o de falar sozinha, principalmente quando estava furiosa. Se bem que neste momento estava um bocado mais para além de furiosa...
Só me faltava esta, aparecer-me este palhaço!
'Agora que te encontrei, não te vou perder novamente...'
Calou-se e começou a rever o filme do dia na cabeça dela. Tudo mudou quando ouviu o nome 'Pedro Goulart' da boca da secretária. Longe de imaginar estava ela que o ia encontrar ali. Conseguia ter-se tornado num homem pior do que o adolescente que era! Estava mais refinado... para pior!
O encontro, aliás reencontro, tinha sido algo de irreal. Quando a secretária anunciou a chegada das visitas, por momentos ainda teve esperança de que tudo não passasse de uma grande coincidência e que aquele Pedro Goulart não tivesse nada a ver com o Pedro Goulart que ela conhecera na escola, que se transformara na sua sombra, de quem ela só se livrara quando mudou de cidade, quem ela já esquecera e de quem agora se lembrava como se do dia anterior se tratasse!
Desde o dia em que recebeu a carta dele, que todos os episódios, até ao mais ínfimo pormenor, lhe vinham à memória! Nunca maltratou tanto uma pessoa como a ele! Chamou-lhe todos os nomes prejurativos do dicionário da língua portuguesa, numa tentativa de o afastar, mas sem sucesso. Parecia masoquista o raio do homem!
O reencontro foi tortuoso para ela. Quando a secretária entrou na sala para anunciar a chegada das visitas, Madalena e os colegas, como era hábito, dirigiram-se ao átrio do edifício para os receber. Reconheceu-o logo. Tinha o mesmo aspecto, só a acne tinha desaparecido... era impossível não o reconhecer! Ele também a reconheceu, e mostrou-o com o olhar, aquele olhar que ela tão bem conhecia e que tanto a intimidava, sentia-se ameaçada!
Quando teve de o cumprimentar, sentiu um arrepio pelas costas acima. Quando as suas mãos se tocaram, sentiu vontade de vomitar, mas, indo buscar coragem onde não sabia que a tinha, ergueu a cabeça e, colocando-se no seu papel:
-Bom dia, Madalena Reis, muito prazer.
-Bom dia, Pedro Goulart.
Durante toda a apresentação, os seus olhares cruzaram-se por diversas vezes, e de todas elas, o olhar dele era o que ela tão bem conhecia, como que hipnotizado... incomodava, irritava, apeteceu-lhe fazer o que fazia nos tempos de liceu e disparatar com ele:
-Para onde estás a olhar, palhaço? Nunca viste?
De nada adiantava, pois ele não reagia, o que a irritava ainda mais!
A reunião correu sem incidentes. Durante o almoço, que foi um buffet servido na sala, enquanto as pessoas circulavam e se socializavam, ele aproximou-se e:
-Parabéns, dra Madalena, bom desempenho!
-Obrigada, dr Goulart, ainda bem que gostou da nossa proposta...
-Já se me tinha constado que era uma mulher muito bem sucedida...a todos os níveis!
-Desculpe, mas tenho de ir ali verificar uma situação...
-Esteja à vontade, não faltarão oportunidades para continuar a nossa conversa!
O almoço acabou com Madalena a conseguir evitar cruzar-se novamente com ele.
Do programa da tarde fazia parte uma visita à produção. Durante a visita, depois de receber uma chamada telefónica, Pedro anunciou ao chefe de Madalena que necessitava de voltar à sala, pois tinha de enviar um email urgente no seguimento do telefonema.
Não foi mais que uma desculpa para ficar a sós com ela, pois sabia que lhe iam pedir a ela que o acompanhassem...
Chegados à sala, numa última tentativa de não ficar a sós com ele, disse, bem alto:
-Pronto dr Goulat, esteja à vontade. Eu espero aqui fora até poder voltar para junto do grupo.
-Não é preciso, pode estar aqui dentro, é só enviar um email e aqui dentro tem onde se sentar!
Contrariada e sem mais argumentos, entrou e sentou-se na cadeira onde estivera a manhã toda.
Ele sentou-se no lugar dele, levantou o laptop e começou a mirá-la daquela forma que só ele sabia e tanto a irritava!
-Foi desculpa essa história do email, não foi?
-Estou a ver que continuas sem me conhecer. Eu tenho de enviar um email, um email para ti. É injusto, tu não saberes nada sobre mim e eu saber tudo sobre ti!
-Tu não sabes nada sobre mim! Não me vês há mais de 20 anos, como ias saber?
-Sei tudo, e podes ver no email que acabas de receber...
Madalena apressou-se a abrir o email e a lê-lo. Era um email extenso em que ele lhe descrevia episódios de diferentes fases da vida dela, incluindo coisas que ela pensava ninguém saber, mesmo Rafael, o marido!
O email acabava com a frase: 'Agora que te encontrei, não te vou perder novamente'
-Isto é mentira! Estás a difamar-me! Vou acabar contigo, palhaço!-já era a segunda vez que usava aquela palavra naquele dia!
Levantou-se e dirigiu-se a ele com os olhos arregalados de fúria. Ele , que mantinha a calma de sempre, deixou-a aproximar-se e quando ela chegou junto dele, agarrou-a e beijou-a.
Tinha feito sempre muita coisa, mas isto nunca havia feito, era a primeira vez que o fazia.
Ela libertou-se dele o mais rápido que pode e a limpar a boca com as costas da mão:
-Estúpido, porque fizeste isto?
-Esperei mais de vinte anos para ganhar coragem. MAs valeu a pena!
-Tu é doente, continuas doente!
Ouviram-se passos no corredor, era o resto do grupo que chegava da produção. Madalena apressou-se a sentar-se no seu lugar.
O final da reunião foi sem incidentes. As visitas foram embora, finalmente.
Agora estava a caminho de casa. Sentia-se insegura. Tinha medo que Pedro lhe aparecesse, que estragasse o seu casamento, a sua carreira. Agora não tinha duvidas de que ele seria capaz. Tinha menosprezado a sua existência, mas agora não o podia fazer! Ele tinha sido bastante claro. Tinha de contar tudo a Rafael!
'Será que ele vai compreender?' -perguntou a si própria alto!
Texto para a Fábrica de Histórias
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