domingo, 17 de maio de 2009

Noite Feliz

27 de Outubro de 1985. 'Logo hoje!', suspirou Leonel. Tanto Delfina lhe tinha recomendado que não se atrasasse, o chefe tinha de ter pedido aquele trabalho à última da hora! Era um dia especial aquele. Leonel e Delfina faziam 12 anos de casados. Leonel, homem na casa dos trinta anos, era um homem alto, cabeleira farta e pele escura. Era casado com Delfina, que tinha sido sua madrinha de guerra dos tempos do ultramar. Como era hábito neste dia, Delfina esperava-o, com um jantar melhorado, um bolo e uma garrafa de espumante. Provavelmente tinha assado cabrito. Ela sabia que ele gostava e nas datas especais cometia uma extravagância e lá encomendava ela um quarto de um cabrito no talho do Sr Augusto. O autocarro já estava na paragem. Poucas já eram as pessoas fora do autocarro, tinha de correr. Começou a correr. Um buraco no passeio. Um pé em falso e Leonel caiu dentro do buraco! Caiu de frente, bateu com a barriga no fundo do buraco. Tinha dores, muitas dores. A custo virou-se de modo a ficar virado de barriga para cima. Assim via as pessoas passarem e poderia pedir ajuda. Foi o que fez. Começou a pedir socorro. 'Por favor, ajude-me'. Algumas pessoas nem paravam, outras abrandavam, olhavam para dentro do buraco, olhavam para Leonel, viam a sua farta cabeleira e a sua pele escura e continuavam caminho. Esteve assim durante um bom quarto de hora. Cada vez passavam menos pessoas e Leonel começava a perder as forças. As dores eram cada vez maiores e ele começou a entrar em desespero. A sua vida começou a passar à sua frente, a escola, a ida para África, o casamento, o emprego, os pais, os colegas, os amigo e Delfina. Será que não a veria mais? O amor da sua vida. Delfina esperava-o. Devia estar já em cuidados. Conseguia imaginar. A mesa posta a rigor, o espumante no gelo, e o cabrito no forno. Delfina já deveria ter ido à porta uma centena de vezes. qualquer ruído a teria trazido à porto. 'Delfina, meu amor, será que não te verei mais?', sussurrou. 'Ó Mãe, está aqui um homem!', ouviu a voz de uma criança. 'Diz filho', ouviu também a voz de uma mulher. Com toda as suas forças, gritou: 'Ajude-me por favor. Não lhe vou fazer mal!' Naquele momento já quase não passavam pessoas na rua. A mulher agarrou o braço da criança e puxou-a para trás, enquanto se curvava para ver 'o homem'. 'Ó minha senhora, pelo amor de Deus, ajude-me. Eu caí, estou cheio de dores. Não lhe vou fazer mal! Ajude-me, por favor' A mulher, assustada, olhou em redor à procura de ajuda. Correu para um café perto do local e pediu para ligar para o 115. Um homem tinha caído no buraco das obras e não conseguia sair. O homem do café ligou para o 115, que vieram ao fim de alguns minutos. Tiraram Leonel do buraco e levaram-no para o hospital. Leonel tinha partido uma perna e perfurado o baço. Foi operado e ficou no hospital em recuperação duas semanas. Foram dias muito dolorosas, que, apesar de tudo terminaram em bem. 'Mais uma hora e as coisa seriam diferente', disse o médico que o assistiu. A mulher que o ajudou foi' um anjo enviado por Deus' disse Delfina. Desde aquele dia nunca deixou de o visitar ou telefonar para Delfina a saber do estado de saúde de Leonel. Era uma rapariga nova, ainda, a mulher que o salvou. Tinha ficado viúva aos 22 anos com um filho de 2 anos nos braços, a criança que descobriu Leonel. O marido trabalhava nas obras e caiu abaixo de um andaime mal montado. Desde aí, a vida daquela mulher tinha sido de luta. Não tinha mais nenhuma família. A sua única ajuda era uma vizinha velhota, a quem o miúdo se habituara a chamar de avó. Tem sido a sua salvação nos momentos maus. Quando o menino fica doente, toma conta dele, para que ela não falte ao emprego. Quando o dinheiro não chega para o mês, é ela quem empresta. Naquele dia Lucinda, era este o nome da mulher, tinha levado o filho com ela para o trabalho porque a 'avó' tinha ido ao médico. 'Isto foi obra do destino', disse Delfina quando ouviu Lucinda falar de todas estas coincidências. As duas famílias ficaram amigas. Visitavam-se com frequência e havia mesmo fins-de-semana em que faziam programas juntos. É noite de Natal. Leonel está completamente recuperado do acidente. 'Terá só de ter alguns cuidados e ser vigiado. Apesar de não ser um orgão vital, o baço se lá estava, alguma tarefa tinha.', disse-lhe o médico quando lhe deu alta. Pela primeira vez, desde a morte dos pais de Delfina, que a mesa tem mais de dois lugares. Tem seis. Tocam à campaínha. Leonel vai abrir. É Lucinda, o filho e a 'Avó'.



Da minha autoria para a Fábrica de Histórias

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