terça-feira, 26 de maio de 2009

Os Namorados


As cores, essas aprendeu-as logo depois de saber dizer 'Avó', que aprendeu antes de dizer 'Mãe' ou 'Pai'.
Aprendeu com o avô, que depois de reformado, se entretinha no anexo do quintal a reparar os móveis, a fazer prateleiras e a pintá-las. Gostava muito e de muita cor, o avô. A sua cor predilecta era o azul. Sempre que podia usava o azul, a cor dos seus olhos, em qualquer circunstância ou momento. Os da mãe, esses de azul têm o raiado assente no ora umas vezes castanho, ora outras verdes. Olhos de camaleão, diz ela.
No quintal havia um capoeiro azul, com portas vermelhas, uma casinha com dois garnizos, verde e uma gaiola, com rolas, branca, tal como elas.Era uma miscelânea de cores, aquele quintal. Até o baú em cimento, lá no fundo, feito para guardar areia era pintado de amarelo.
Na outra ponta do quintal havia um cata-vento, que tinha um galo branco com penas vermelhas. Um dia um amigo do pai arranjou ao avô placas de acrílico de muitas cores. O avô logo se apressou a desmontar o galo do cata-vento e substituir as penas do rabo do galo, uma a uma por as cores todas do acrílico.
A mãe, essa aprendeu bem nova a arte de bordar, da qual fez profissão.. Adora combinar cores. Inventar nonas combinações de materiais e de cor. Era conforme lhe pediam. Bordava de tudo, com todas as cores. Apaixonada pela cor, tal como o avô. As meadas de Mouliné amontoavam-se na caixa das linhas feita pelo avô. Cada divisão tinha uma cor e quando a mãe se enganava a colocar a meada no sítio, logo ela vinha em socorro das meadas e as colocava no lugar. 'Mãe, puseste o amarelo no sítio do castanho! ‘, observava ela com um ar escandalizado como se a mãe tivesse cometido a maior das infracções!
‘Ó filha, estava distraída, coloca no sítio, se fazes o favor.’, respondia ela com um sorriso no canto do lábio.
Aos quatro anos participou num concurso de desenho. O pai trouxe-lhe uma cartolina branca A2 e ela durante muitas tardes preencheu a dita cartolina com a sua criatividade. No canto Superior esquerdo estava o sol, amarelo, claro! O céu era azul. Para ela não havia céu de outra cor que não a da cor dos olhos do avô.Uma casa por baixo do sol. O telhado vermelho, com o recorte das telhas a preto. De uma chaminé num dos cantos do telhado, vermelha também, saía um fumo, cinzento. Pormenor, feito com o lápis. 'Papá, o fumo não é preto, é cinzento. Como faço agora?', perguntou ao pai que durante aquele processo de elaboração da obra se sentava todos os fins de tarde, junto a ela a vê-la desenhar e pintar.
Ela fazia questão de pintar só na presença do pai. Da Mãe não. Daquilo só o pai percebia!´Pinta com lápis'. 'Com o lápis das contas?!', pergunta ela.'Sim filha, vais ver que fica bem!'Pintou. 'Ficou bem, Papá!'O Papá é que sabia daquilo! Pensava, ao mesmo tempo que, sem se aperceber, o seu engenho se apurava para o improviso. Ao fim de mais de três décadas é rainha. 'Tem solução e resposta para tudo', diz que a conhece.A obra foi ficando completa com as janelas da casa, a porta, que foi pintada de vermelho e um caminho.Ao longo desse caminho tinha árvores. Árvores verdes com bolinhas, que apesar de parecerem as bolinhas do azevinho, seriam maçãs dadas a textura da árvore!No fim do caminho, bem no centro da folha e num tamanho bem grande a destoar com o tamanho da casa, bem mais pequena, estavam... os namorados! Um rapaz, de calças pretas e camisa verde, da cor da que o pai vestia no dia em que a camisa foi pintada. Não faltou o bolso. Sempre ouviu o pai queixar-se quando as camisas não tinham bolso. Dizia que era uma chatice! Ele lá sabia e sendo o pai o modelo para tudo certamente que o 'namorado' se sentiria incomodado por ter uma camisa sem bolso!Estavam de mãos dadas. As mãos dadas eram uma bola amarela, tal como as caras, os braços e as pernas. Era o mais parecido com a cor da pele. A rapariga tinha um belo par de votas até meio da perna, com os pés virados para a direita alinhados com os do rapaz, que calçava um par de sapatos castanhos, que à escala seria pelo menos um tamanho 46!As botas da namorada eram pretas e a saia cor-de-rosa. Era a cor das meninas. Todas as meninas gostam de cor-de-rosa, achava ela. A blusa era um rosa mais claro, porque não tinha lápis de cor branco e se não pintasse podiam pensar que se tinha esquecido!Os cabelos da rapariga eram pretos, como os dela, só que longos e lisos tal como ela ansiava que os seus curtos e encaracolados um dia fossem.'Só falta assinar e amanhã já posso levar', disse o pai. E assim foi. No canto inferior direito desenhou o nome e por baixo '4 anos'.
Chegou o dia dos prémios. Foi num Sábado à tarde depois da aula de ginástica, que ela tanto detestava. Mas naquele dia a aula custou menos. Estava com o pensamento no concurso e não no quanto eram seca aquelas aulas de ginástica!Quando entrou na sala, lá estava o seu desenho. Tinha-lhe dado o nome de 'Os Namorados'.Chegou a hora dos prémios. Chamaram o terceiro, segundo e não é que ela ganhou o segundo prémio! Uma coisa ela não percebeu: Porque se riram todos quando foi anunciado o tema do desenho?
Ganhou, para além de um abraço apertado da mãe e do pai, uma caixa com 50 lápis de cera e um livro: 'Tó e as cores', que ensinava a misturar cores.
Que felicidade. Agora já tinha cinzento para o fumo e branco para as camisolas. Tinha todas as cores! E também aprendeu que se misturasse vermelho com amarelo tinha laranja e se misturasse azul com amarelo tinha verde! E que preto e branco dava cinzento. Essa parte tinha de ser em casa do avô, onde havia muitas tintas e a paciência dele para a ajudar a fazer as experiências.

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei...

Alberto Velez Grilo disse...

Só li a história hoje, depois de escrever a minha.

Está muito bem, como sempre.

Eu sempre tive um mau jeito para desenhar :)

Parabéns