sábado, 14 de março de 2009

Os Degraus


01 de Novembro de 1965, dia de todos os Santos. Priscila, jovem grávida do primeiro filho, começa a ter as primeiras dores de parto às 9 da manhã.

De imediato, a mãe manda chamar a parteira, madrinha e tia da parturiente, que não sendo profissional, era quem normalmente ajudava as crianças das redondezas a nascer.

A casa de Priscila, ficava no alto de 100 degraus, nas margens do rio Douro, a caminho de Entre-os-Rios, num sítio chamado Ribeira d'Abade. Da janela do quarto e da cama via-se o rio. Estava revolto e ia cheio. Dona Ema, a parteira, madrinha, tia, quando chega ao quarto, e antes de olhar para Priscila, olha pela janela e diz:

-Vai ser difícil. Vamos ter que esperar que a maré vire.
Olha para Priscila e diz:
-Minha filha, ainda vai demorar. O rio vai cheio… só quando se virem as escadas dos barcos é que a criança nasce!
Priscila arregalou os olhos, já vermelhos da dor e disse:
-Mas Madrinha, isso só lá para amanhã ao final do dia.
-Pois é minha filha, vais ter de esperar…
Luís, o marido de Priscila, homem pouco crente, diz:
-Mas tia Ema, porque diz isso, se ainda nem lhe tocou?
-Meu filho, não preciso de lhe tocar, para saber que para a criança nascer, a lua tem de mudar e quando a lua mudar a maré muda, e quando a maré mudar, a criança nasce.

-Então vai para o hospital.
-Para o hospital não!-Diz Priscila em tom de grito- Eu não quero ir para o hospital. Eu quero ter o meu filho aqui!
Ema, sem ainda ter tocado em Priscila, pega-lhe na mão, aperta-a entre as suas e diz-lhe:
-Minha filha, confia em mim. O bebé só nasce amanhã ao fim da tarde, com a ajuda da maré. Só a essa hora ele tem como sair. Agora vou-me embora e volto amanhã por volta das quatro da tarde. Agora descansa, tenta dormir, que vais precisar de todas as tuas forças amanhã.

Dona Ema era uma entendida nestas coisas das marés, dos partos e das luas. Já feito muitos prognósticos sobre partos e horas de nascimento e nunca, mas nunca tinha falhado. Se ela dizia que a criança nascia num determinado dia e hora é porque nascia. Contavam-se histórias de raparigas que tinham sido levadas para o hospital, movidas pelo desespero e impaciência e no hospital nada tinham feito. Os bebés tinham nascido no dia e na hora prevista por ela!

Dona Ema não era só de partos que sabia. Ela sabia quase todas as rezas para curar as doenças das crianças. Quando alguém tinha papeira, era a ela que recorriam para que a talhasse. E quando eram homens em idade fértil, ela sabia mais umas rezas para que ele não deixasse de ser fértil.

Sabia também talhar a ciática e cozer o fio. 'Cozer o fio', era para quem torcia o pé. Num púcaro de barro, cozia uns fio de linhaça, enrolava-os à volta do tornozelo do pé torcido e dizia uma lenga-lenga. O que é certo, é que, ou porque já tinha que passar, ou pela 'cozedura', a pessoa curava-se em poucos dias. Quando isso não acontecia, é porque não era só torcido, e então tinha de ir ao 'endireita' para ele completar o serviço!

O que era certo e sabido é que as coisas se passavam tal e qual ela dizia. E sabendo disto, a jovem Priscila entre dores e choros, foi-se tentando resignar. Luís, o marido, já mais crente na ciência médica do que na sabedoria popular, ainda tentou convencê-la a ir para o hospital, mas ela, que confiava cegamente na madrinha, não quis sair de casa.

A noite foi longa. Sempre que tinha uma contracção a rapariga olhava para o rio. À procura das escadas do barcos....que mesmo com a maré vaza não se viam da cama.

As contracções eram agora maiores, o dia começava a nascer. Priscila, tinha contado todas as horas e minutos da noite. Contava agora as da manhã, perguntando no intervalo de cada contracção se já se viam as escadas. 'Não', era a resposta. A manhã passou, a tarde chegou, o rio ia agora mais vazio, mas as escadas nem vê-las. Da madrinha, nem sinal. Tinha ido 'talhar' o tresorelho à neta da Camilinha da Calçada...

As contracções eram quase seguidas, Priscila começava a entrar em desepero. A ida para o hospital começava a ser uma hipótese. Entre gritos e gemidos, ora perguntava pela madrinha, ora pelas escadas dos barcos...

A Madrinha chegou. Olhou para ela e disse:'Agora sim, está por pouco.' Começou a pedir as coisas do costume: a água quente, as toalhas... e pediu que todos saíssem do quarto. Priscila ia ter a criança...

Luís cá fora estava nervoso. Veio até ao cimo da escadaria, de onde se pôs a olhar o rio. a corrente ia forte, os barcos baloiçavam no ancoradouro, a água batia com força na margem. Fixou o olhar no movimento da água, que parecia movimentar-se ao sabor dos gemidos de Priscila que se ouviam dali...

A corrente pareceu acelerar, Priscila berrava...Priscila deu um berro e calou-se. Silêncio, seguido do choro de uma criança. Luís deu um pulo, quando ouviu o choro da criança. Luís olhou para o rio, antes de voltar para dentro e disse: 'Os degraus!'.

Os degraus dos barcos já estavam à vista...


Foto tirada daqui

História para a Fábrica de Histórias'

2 comentários:

Anónimo disse...

É Degraus, não é ?

Reflexos disse...

Bom dia,

É degraus, sim.
Boa semana