quarta-feira, 26 de maio de 2010

Porquê?!

Se a história da vida deles fosse como a dos 'outros', Ana e Filipe estariam, agora, rodeados dos filhos e netos a prepararem-se para a operação de Filipe.
Fosse a história deles igual à de tantos outros e estariam reformados, agora, na casa dos oitenta anos.
Teriam, como os outros, trabalhado uma vida inteira e estariam reformados.
Para ser igual à dos outros, Filipe passaria o dia a tratar dos seus selos e das suas mostras filatélicas, a sua grande paixão. Ana tratava dos dos netos, das suas plantas e dos cães.
A ser igual, teriam uma empregada, que ajudava Ana nas lides domésticas e tomava conta dos netos, que os filhos deixavam à guarda dos avós enquanto iam trabalhar.
A ser assim, teriam uma propriedade, no Douro, no Minho ou mesmo no Alentejo e passariam lá grandes temporadas. E nos fins-de-semana recebiam a visita dos netos e filhos.
Como com os outros, os netos iam com eles nas férias de verão e divertiam-se à brava.
Viajavam, tal como muitos da idade deles, e escreviam muitos postais e emails aos filhos e netos de cada cidade por onde passavam. E agora, como muitos, depois de cinquanta anos juntos, uma catarata, ou até duas, teriam aparececido na vida deles para lhes dar, a eles e à família, alguma inquietude e levá-los a planear a, nas calmas, sem stress, e tomando o assunto como algo de natural; a planear a remoção das catarratas.
Seria algo banal, até e muito normal, quando já se tem a idade deles.

Mas não, eles não são como os outros. Eles não têm filhos... ainda ou nunca. É um caso em aberto, assim como o futuro deles.
Estão casados há pouco mais de uma década e, ao contrário dos muitos outros, não tiveram logo filhos, mas singularmente oito meses depois do casamento um acidente, que um relatório de uma companhia de seguros rotulou como 'doença natural'; atirou Filipe duas vezes para uma mesa de operações em menos de um mês.
Essa doença natural mudou muita coisa. Colocou muita coisa em stand by, inclusive a vontade e o querer ter filhos, talvez.
Essa 'doença natural' cegou o Filipe de um olho e limitou-lhe toda a sua vida. Deixou de poder conduzir,das coisas que ele mais gostava de fazer. Deixou de poder ir a concertos, jogos de futebol e coisa tão simples como ver um filme em 3D!

A doença natural debilitou-lhe a visão e -lo a ver 60%.
Uma década depois, uma catarata silenciosamente entrou na vida dele(s). Entrou devagar e quando já todos sabiam da sua existência, começou a 'dar nas vistas'. Em três tempos a visão de Filipe passou para 20% e 'expulsá-la' tornou-se inevitável.

Borboletas no estômago.
Uma operação às cataratas é algo de banal!-diz o médico- mas...- e aqui as borboletas entram em ebulição-... tu só tens um olho com visão e é nesse que vamos mexer. Por isso é lógico que tenhas medo!
E ele tem, e ele está com medo, muito medo, muitos ses, na cabeça dele...

E a operação foi marcada. A operação vai ser um destes dias de Maio. Não é banal, porque não é banal uma pessoas há pouco entrada nos quarenta ter cataratas e também não é banal, ter visão só num olho, o que tem agora a catararta.
Não é banal, uma operação banal, sentenciar o futuro de alguém.

Eles (ainda) não têm oitenta anos, (ainda) não trabalharam tudo. O Filipe (ainda) não organizou a sua mostra filatélica.

O livro das vidas deles tem muitas páginas em branco, mais do que as dos outros que fazem operações às cataratas, os que já têm netos, os que já trabalharam e os que ainda vêm dos dois olhos... os que já viveram o dobro e ainda têm o dobro das hipóteses do Filipe...

Nas páginas em branco, vão-se escrevendo muitos e muito grandes, pontos de interrogação. uma incógnita, o futuro... nas páginas já escritas muitos pontos de exclamação precedidos de outros tantos de interrogação... muitos mais que qualquer outros!
Porquê?!

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